Diário Explica: Periferia sem risco, como funciona e por que elaborar um plano para conter impactos das enchentes?

Caroline Souza e Tayline Manganeli

Diário Explica: Periferia sem risco, como funciona e por que elaborar um plano para conter impactos das enchentes?

Beto Albert

Pesquisadores percorrem áreas de risco em Santa Maria.

Percorrendo a Rua Bege, no Bairro Noal, Região Oeste de Santa Maria, é possível encontrar marcas das fortes chuvas de maio. A água que ainda empossa na rua de chão batido, a lama que não secou em frente aos portões e casas com pequenos reparos, remendos, reformas em andamento. É o caso da residência de madeira e com quatro cômodos da dona de casa Fátima Guimarães, 45 anos.

A chuva que alagou a via também invadiu a casa e gerou danos, como o apodrecimento do assoalho, que agora foi substituído. Fátima aproveitou o valor repassado por benefícios socioassistenciais para fazer um degrau, que aumentou em um palmo a altura do piso, a fim de evitar – ou ao menos minimizar – novos estragos de uma futura enchente.


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​O problema, segundo Fátima, é a canalização da rua, que entope e leva água para as residências:

– Quando chove é sempre a mesma coisa, tem que pôr botas para sair de casa – afirma.

Dona Fátima, 45 anos, reside no Bairro Noal. Beto Albert


O pedido da moradora, que reside há uma década no mesmo local, é que não precise deixar sua casa. A vontade dela é compartilhada por vizinhos e amigos que também sofrem com os mesmos problemas.

Poucas quadras percorridas são necessárias para perceber as condições a que os moradores são submetidos: esgoto a céu aberto, tubulações rompidas, vegetação alta, lama onde deveria existir calçada.

Pesquisadores registram em foto e anotações o que é observado.Beto Albert

Com olhares atentos, três pesquisadores anotam os detalhes do que veem. Com um mapa em mãos, percorrem rua por rua, casa por casa do bairro. O motivo? Mapear cada ponto da área e indicar os riscos existentes.


Mais segurança nas periferias

A iniciativa faz parte do projeto Periferia Sem Risco, do Ministério das Cidades, do governo federal, e é realizada em 20 cidades brasileiras. No Rio Grande do Sul, somente Porto Alegre e Santa Maria foram contempladas com recursos para o estudo.

Uma equipe técnica formada por oito pesquisadores da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) foi escolhida para realizar este trabalho e elaborar o Plano Municipal de Redução de Riscos (PMRR) na cidade. O objetivo é identificar os riscos aos quais os moradores dessas áreas estão expostos – como alagamentos, inundações e deslizamentos – e indicar possíveis soluções que possam ser colocadas em prática pelo poder público para redução dos danos.

– Ao final de cada comunidade mapeada, teremos propostas de intervenção tanto estrutural, como obras, e não estruturais, que são ações de educação e contato com a comunidade. Com um pré-orçamento, vamos fazer sugestões que vão servir para a prefeitura captar recursos e planejar como vai trabalhar com essas áreas e fazer a erradicação desses riscos – explica Andréa Nummer, geóloga e coordenadora do PMRR.

O projeto é anterior às enchentes de maio, iniciou em julho de 2023. No entanto, após a catástrofe climática, as ações se tornaram mais urgentes. A expectativa é que até setembro, o trabalho possa ser concluído.


Participação comunitária

Proteger a população é uma tarefa coletiva que envolve governos e as pessoas. Para que o mapeamento de riscos e as soluções propostas sejam eficazes, o projeto considera a participação da comunidade essencial neste processo.

Além da equipe técnica, o trabalho inclui a formação de um Comitê Gestor, formado pelo prefeito, representantes de secretarias e da Defesa Civil, e um Comitê Comunitário, com moradores da área que está sendo estudada.


Áreas mapeadas em Santa Maria

O trabalho realizado por quatro professores e quatro bolsistas elencou 11 áreas de risco em Santa Maria. O objetivo é visitar e percorrer uma a uma. Os locais estão espalhados por seis bairros: João Goulart, Urlândia, Noal, Salgado Filho, Carolina e Itararé. Como explica a professora Andréa, somente partes dos bairros são considerados. Se tratam de áreas de riscos que estão dentro destes locais, mas não caracterizam o bairro inteiro. As áreas mapeadas são:

-Área da Vila Schirmer
-Área do Residencial Km 3
-Área da Vila Urlândia
-Área da Vila Santos
-Área da Vila Lídia
-Área do Beco do Guarani
-Área da Vila Canário
-Área da Bela Vista
-Área da Bürger
-Área da Vila Nossa Senhora Aparecida
-Área da Bilibiu

O mapeamento iniciou pelas ruas do Bairro Urlândia e até o momento estendeu as visitas até o Bairro Noal. Conforme a geóloga, os principais problemas em Santa Maria sempre foram inundações e alagamentos. Mas as chuvas de maio revelaram outra preocupação: os deslizamentos.

– Mudou o que se sabia sobre riscos. Risco, nos definimos, quando atinge as pessoas ou causa prejuízos em acessos, pontes, estradas. Então agora os riscos são inundação, alagamento e erosão de margem. Ao final de cada unidade, a ideia é ter propostas de intervenções para cada área – afirma a geóloga.

Bairro Noal, em Santa Maria. Beto Albert


Passo a passo do trabalho

  • Voo de drone para identificar possíveis áreas de risco

Com ajuda do setor de geoprocessamento da Universidade, os pesquisadores identificam áreas que apresentam riscos hidrológicos, como alagamentos por bueiros e inundações por transbordamento de rios, e geológicos, como deslizamentos. As informações servem de base para as demais etapas do trabalho.

  • Mobilização da comunidade

Para garantir a participação da comunidade na elaboração do plano, uma reunião é organizada para colher informações sobre riscos observados por quem vive no local. Como forma de mobilizar as pessoas, estratégias como carros e motos de som, rádios comunitárias e divulgação em escolas são adotadas como canal de comunicação.

  • Equipe vai a campo

Com as áreas mapeadas por drone e informações coletadas junto à comunidade, é hora de ir a campo. As equipes visitam os locais para avaliar as estruturas das ruas e casas. Tudo é registrado com anotações e fotografias. A pesquisa será utilizada para a elaboração de um mapa com a indicação dos riscos.

Diferente de outros mapeamentos que consideram grandes áreas de forma geral, nesse caso, há um olhar individual sobre cada uma das estruturas, levando em conta diferentes características e graus de vulnerabilidade de cada residência.

  • Elaboração do mapa de risco com possíveis soluções

Os dados obtidos são discutidos e validados pelos comitês integrados por agentes públicos e comunidade residente da área de risco. Após isso, o mapa com a classificação dos graus de riscos hidrológicos e geológicos é elaborado. Um relatório final também deve apontar possíveis caminhos para a solução dos problemas indicados.


Importância de um plano de redução de riscos

O contexto atual de eventos climáticos cada vez mais frequentes e intensos, exige não apenas capacidade de resposta e adaptação, mas principalmente de prevenção. Diagnosticar os perigos é uma etapa importante para dar suporte à gestão de riscos e ao planejamento de medidas preventivas que possam evitar os desastres e seus impactos.

A pesquisadora explica que, ao dispor de um plano de redução de riscos, o município se torna mais preparado para a captação de recursos a serem investidos em mudanças. Isso foi evidenciado neste momento pós-tragédia climática vivenciado pelo Rio Grande do Sul. Em muitos casos, gestores públicos precisaram colocar em prática ações emergenciais de resposta sem contar com planejamentos antecipados capazes de ajudar na contenção dos problemas.


Riscos são construídos socialmente

Um dos conceitos seguidos para a elaboração do plano é o reconhecimento de que o risco é socialmente construído e os desastres não são naturais. Isso significa que é necessário considerar o contexto histórico que produziu riscos, como as formas de ocupação do território,as relações sociais e escolhas políticas e econômicas adotadas ao longo do tempo.

– Se as pessoas estão em uma área de risco é porque foi a única opção, já que áreas mais seguras têm custo mais alto. A pandemia é um exemplo de como as pessoas tiveram que se reajustar por falta de seus empregos que afetou o pagamento do aluguel, por exemplo – explica Andréa.

No mesmo sentido, a professora destaca que, ao propor soluções, é preciso levar em conta a relação das pessoas com o território. Por isso se deve pensar em soluções individuais para cada residência e não somente a área como um todo. Na opinião do grupo de pesquisa, o ato de retirar moradores de casas em áreas de risco deve ser o último recurso adotado:

– A realocação deve ocorrer somente quando a pessoa estiver em risco e não houver nenhuma medida para mitigar o perigo. As comunidades têm uma teia social, as pessoas têm relação umas com as outras, com seu trabalho, que é próximo de onde elas residem. Então isso tem que ser o último recurso – explica.

Entre as soluções a serem propostas estão obras de contenção de encostas, limpeza e retirada de sedimentos de canais d’água e reconstrução de margens dos rios.

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